terça-feira, 17 de agosto de 2010

Como boldo pra alma

Mandei minha alma fazer um workshop com meu fígado. Decidi que ela vai aprender a depurar toxinas e reconstituir-se cada vez que alguém arrancar um pedaço.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Qual o momento mais feliz da sua vida?


Era carnaval. Meus olhos pareciam vermelhos pelo suor que escorria da testa e terminavam por salgar minhas pupilas dilatadas, mas não era. Meus olhos que se esbugalhavam famintos de ver cada pedaço de tudo estavam vermelhos de amor. Na verdade, eu era todo um vermelho só. Inflamado numa emoção por amar minha vida tanto e tanto. Eu não me amava mais fazia tempo. E ali, dançando enquanto o sol esburacava de luz a manhã, eu me senti vivo e mais nada. Eu não estava com medo, e como eu me amava por isso.

Qual o momento mais feliz da sua vida? Era a pergunta seguinte a Nome completo e Idade num questionário esquisito para um emprego temporário como figurante em um programa televisivo do Canale 5, em Roma. "Que pergunta é essa?", pensei, antes de ser catapultado lá atrás, quando eu tinha 15 anos e meu pai me deixou dirigir o seu velho opala branco 1979 pela primeira vez.  Que lembrança boa e como fui feliz naquele dia. Só é estranho eu ter que regressar tantos anos pra me lembrar de um momento assim, que mereça dizer "mais feliz". Depois disso, devem ter existido outros milhares que me deixassem em dúvida sobre qual seria "mais". Será que simplesmente apaguei ou decidi não aceitar que eu fui e podia ainda ter momentos de felicidade extrema nessa vida? Momento amargura, era esse meu momento naquele trem.

Eu e mais cinco pessoas éramos os passageiros do quinto vagão do Superstar, indo de Milão para Roma. Acho que no inteiro trem, fora eu, toda a gente lia ou dormia um sono que parecia sem sonho. Esperando processar a resposta inoportuna do questionário, corri os olhos sobre a paisagem que fugia janela afora. Tudo com cara de frio e de poucas palavras. Um espantalho sozinho na plantação já colhida. Tentei firmar a vista, mas tudo se movia depressa demais. Ainda mais velozes eram as palavras que não faziam parada em mim. Vi uma cascata linda e ela sumiu sem que eu decidisse uma palavra pra dizer linda.

Afinal, quando foi a última vez em que fui "mais feliz"? Pensei no que me fazia falta, além da risada da minha mãe. Pensei nos quase dois anos sem voltar ao Brasil e nas coisas que deixei de viver ali desde que me transferi para Roma. Pensei na última vez que dancei, e me veio tão clara a imagem daquele meu último carnaval antes de partir. Em Salvador. Foi ali.

domingo, 8 de agosto de 2010

Bundalelê do amor



Vontade de importância.
Acho que é isso que move uma outra nossa vontade: de ser amado. Afinal, é a partir do momento que decidimos o grau e o volume de importância que queremos receber e dar a alguém que, consequentemente, classificamos a coisa como amor. Se eu te amo é porque já decidi sua importância pra mim - importância essa que vai definir níveis de entrega, de convivência, de suportação, de adoração, de desejos desavisados e desenfreados compromissos. Basicamente, amo você porque você é importante pra mim e quero ser importante pra você. Vontade de importância é se atentar a pequenos detalhes pra fazer grande diferença. Mostrar para o outro, a cada dia, que ele é mais do que pensa ser ou realmente é. E, incontáveis vezes, abaixar para que a visão panorâmica da vida seja o privilégio do amado. Claro, fazer tudo isso na esperança e desejo convicto de que o outro faça o mesmo por você. Do contrário, entrará em vigor a lei "bundalelê". Pois restará a você somente a desimportância de ser um mero traseiro exposto. Tese que explico usando uma frase de minha mãe: quem muito abaixa mostra a bunda. Simples palavras de verdade absoluta.

Olhar rimado



Dia desses, ele cismou de ciumar. 

Cismou, de cisma sem nome, que ela, vendo um outro rapaz, cimentou o olhar. Cimento armado, olho vidrado, foco milimetrado, sem piscar pra não perder. Os olhos-só-pra-mim que antes eram dele, coitado, estavam encabulados de coisa que ele não podia entender.

Justo aquele cabra arretado, cheio de um ciúme danado, terminou paralisado e o olhar dela escapado, tão vadio e descarado, decidiu logo esquecer.

É que ele tinha cismado, de cisma sem nome, que o seu olhar mais cimentado, aquele bem caprichado, seria pra sempre dela. Mesmo sem ela querer.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

No hospital



Teclo em silêncio 
e rompe a escuridão do quarto do hospital apenas a luz fria do monitor do laptop. O silêncio, que aqui é obrigatório, sempre me incomodou. É que nele se propagam mais agudas as minhas infinitas vozes. Aqui dentro, na mudez das horas que esperam cura, elas se agitam. É que elas, as vozes, sabem que nasceram pra isso, pra romper silêncio. Nasceram pra ser qualquer coisa de rumoroso, tipo um pedido. Ou conselho, declaração e desculpa. Um grito. Ou apenas ruído, uma oração. E esse emaranhado de vozes que sonham corda vocal não cansa de tentar embarque clandestino nos vagões das palavras que reservaram passagem pra partir de mim.